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Como é que ele consegue fazer isto?”, perguntava espantado Miles Davis enquanto assistia a um concerto de Jimi Hendrix em 1969. Nesta altura o trompetista era já um dos maiores nomes de culto do jazz norte-americano, cujo ego e génio se encontravam nas mesmas proporções. E se até esse ano o músico já tinha marcado profundamente a história do jazz, agora a necessidade de mudar chamava outra vez mais alto. O trompetista queria chegar à geração que celebrava o rock e o funk psicadélico de Sly Stone, James Brown, Marvin Gaye e, claro, Jimi Hendrix. Nasce então Bitches Brew, um dos discos mais revolucionários da história do Jazz.

Jack DeJohnette, baterista que integrou o vasto grupo de músicos que acompanharam Davis nas gravações de Bitches Brew, afirmou à revista Uncut que este álbum era “uma crise de meia-idade”. Isto porque, segundo o baixista Dave Holland, “todos os seus amigos e namoradas eram, no mínimo, 20 anos mais novos que ele e ele não queria afundar-se nos livros de história, queria sim tornar–se novamente relevante”.

Dois anos antes de Bitches Brew o trompetista já tinha introduzido alguns instrumentos eléctricos no seu quinteto. Mas foi neste disco que atingiu o auge da sua fase eléctrica. Nele podemos ouvir seis temas que são uma verdadeira amálgama hipnótica que funde jazz progressivo, funk narcótico, e rock furioso, em improvisações que têm muito em comum com as imagens mais surrealistas (como mostra a capa do disco, do pintor Mati Klarwein)

Depressa Bitches Brew se tornou um sucesso comercial, com mais de meio milhão de cópias vendidas, o que na altura era uma verdadeira miragem para qualquer músico de jazz. O sucesso comercial e o facto de levar o jazz até terrenos até então impensáveis criou uma série de detractores que consideravam que a mistura explosiva de sonoridades ali presente não poderia ser considerada jazz.

Esta mudança tão profunda na música de Miles Davis fez até desconfiar os seus músicos. “Ao início achava que o piano electrónico era apenas um brinquedo estúpido e enorme”, confessou Chick Corea. Os conselhos que o trompetista dava à sua banda na sala de gravações também não eram os mais comuns. “Toca guitarra como se não fizesses a mínima ideia de como se toca uma guitarra”, disse Miles Davis a John McLaughlin.

Mas o que foi na altura gravado, em longas sessões de improvisos está bem distante do produto final que hoje conhecemos como Bitches Brew. É que parte do seu estatuto revolucionário está relacionado com as técnicas de pós-produção que Miles Davis e Teo Macero utilizaram em estúdio. Juntos foram escolhendo excertos dessas gravações, manipulando- -os e adicionando-lhes efeitos de estúdio realmente inovadores para a época. O hip hop, por exemplo, veio beber aqui a forma como trabalha os samples.

Esta vontade de explorar as possibilidades de estúdio era também resultado da admiração que Miles Davis sentia por Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) e White Album (1968), dois dos outros álbuns mais inovadores da época e cujas técnicas de produção mereceram o elogio de Davis.

Na verdade há um antes e depois de Bitches Brew. Nomes como Radiohead, Tim Buckley, Portishead, Can ou Brian Eno foram profundamente influenciados por este trabalho, onde o jazz é somente a ponta do iceberg.